Se tem uma coisa que nós, brasileiros, conseguimos fazer com maestria é resumir assuntos tensos, como o preço dos aluguéis, com apenas um meme.
Particularmente, gostei bastante de alguns desses que surgiram no Twitter, algum tempo atrás, caracterizando os SantaCecilers — antagonistas hipsters dos coxinhas Faria Limers — e apontando como a existência desse grupo em um determinado bairro poderia elevar o custo de vida daquela região.
Tudo bem, eu sei que algumas das piadas com o estilo SantaCeciler na real não passam de homofobia, machismo e elitismo sob o manto do “humor”, porém, o fato é que o meme é válido e representa um problema grave de algumas cidades.
A classe criativa e a gentrificação
Todo SantaCeciler é um hispter geolocalizado. Ou seja: é a representação de uma classe criativa, supostamente elitizada, predominante em uma determinada região.
Para o urbanista Richard Florida, autor do badalado The Rise of the Creative Class (“A ascensão da classe criativa”), esse tipo de classe criativa, composta por artistas e profissionais do mercado de tecnologia, a princípio não faria mal algum às cidades. Pelo contrário.
Em seu livro, Florida diz que a flexibilidade, a tolerância e a excentricidade dos criativos derrubariam o status quo de bairros e locais de trabalho, atraindo um público mais jovem, propenso a mudanças, e, portanto, tornando as cidades melhores para todos.
Essa expectativa que o urbanista tem a respeito do ideal progressista da classe criativa, principalmente aquela ligada à produção de tecnologia faz sentido, porém, somente até a página 2. Mas, prometo falar mais a respeito disso em outro post futuramente.
Acontece que o próprio Richard Florida e, claro, a realidade, mostraram que essa teoria não se sustenta por muito tempo.
Em The New Urban Crisis: How Our Cities Are Increasing Inequality, Deepening Segregation, and Failing the Middle Class-And What We Can Do about It (“A nova crise urbana: como nossas cidades estão aumentando a desigualdade, aprofundando a segregação e prejudicando a classe média – e o que podemos fazer a respeito”), um tipo de mea culpa escrito alguns anos após The Rise of the Creative Class, Florida discorre sobre como parte da classe criativa, principalmente a do mercado digital, é, muita das vezes, composta por pessoas com salários mais recheados, que conseguem pagar e manter o alto custo de vida de determinadas regiões, fazendo com que os preços destas localidades se tornem impeditivos para a classe média e os pobres.
Nesses lugares, a gentrificação se transformou no que alguns chamam de ‘plutocratização’. Uma força contrária à lugares para se viver. Não são apenas músicos, artistas e criativos que estão sendo expulsos: um número crescente de trabalhadores do conhecimento, economicamente favorecidos, está vendo seu dinheiro ser consumido pelos altos preços das moradias nessas cidades e começam a temer que seus próprios filhos nunca possam para pagar o preço do custo de vida
Richard Florida
Com empresas de tecnologia se concentrando em bairros de alto padrão, grupos da classe criativa com salários mais gordos conseguem segurar seus cargos por morarem próximos ao trabalho (tendo, assim, um menor desgaste no dia a dia). Algo que é totalmente o inverso de quem recebe menos e, portanto, não tem condições de manter um aluguel nas alturas.
Não por acaso, hoje o país vive um verdadeiro déficit de mão de obra na área da tecnologia, mas, que foi bastante reduzido a partir da pandemia, com a adoção do trabalho remoto (fator que abriu possibilidades para moradores de qualquer lugar do mundo).
Preço dos aluguéis X diversificação econômica
Para além dessa questão da gentrificação nos grandes centros, é importante perceber que o custo de vida em pequenos municípios também pode impactar não só na expansão do segmento nacional de inovação como na diversificação econômica de cidades do interior.
A mineração e o custo de vida em Mariana
Vejamos o exemplo de Mariana, em Minas Gerais.
De acordo com uma matéria publicada em 2023 pelo jornal O Tempo, com o retorno de parte das operações da Samarco, a evasão de estudantes do campus da Universidade Federal na cidade aumentou cerca de 91%. Tudo isso por conta da especulação imobiliária alavancada pelas atividades da mineradora.
Para se ter uma ideia, em alguns casos os aluguéis do município subiram de R$ 1300 para R$ 4000, tornando a vida dos estudantes, pesquisadores, pequenos empresários e grupos culturais praticamente impossível na cidade.
“As pessoas de classe média mal conseguem mais viver aqui, então esqueça os artistas emergentes, músicos, atores, dançarinos, escritores, jornalistas e pequenos empresários. Pouco a pouco, os recursos que mantêm a cidade vibrante estão sendo eliminados”.
Essa aí de cima é uma frase do músico David Byrne, ex-integrante do Talking Heads, sobre o custo de vida em Nova York, porém, vale perfeitamente para diversos outros lugares do mundo.
Soluções coletivas
Richard Florida diz em determinado momento que “as nossas capacidades de inovar e de fazer a economia crescer dependem da concentração de talentos, empresas e de outros ativos econômicos nas cidades”. Essa é uma ideia que conhecemos como clusterização.
Jane Jacobs, uma genial urbanista e ativista social, autora do clássico “Morte e vida das grandes cidades” também defendia essa clusterização ou agrupamento urbano para o fomento à inovação, porém, hoje em dia, tanto Florida quanto outros planejadores urbanos vem pontuando os problemas da clusterização pontuados aqui no texto.
Pontuando e apresentando algumas soluções.
Para alguns economistas, como o ganhador do Prêmio Nobel, Paul Krugman, a melhor maneira de sairmos dessa sinuca é o governo estimular a economia gastando mais dinheiro em infraestrutura, possibilitando que novos clusters inovadores surjam em lugares mais afastados dos grandes centros.
Outra ideia é a criação de impostos sobre o valor da terra, capazes de ajudar a garantir que os benefícios públicos sejam compartilhados de forma mais ampla pelo público.
Por fim, outra solução apontada vem da ideia de que a nossa economia simplesmente não tem empregos bem remunerados suficientes para sustentar uma nova classe média, por isso, seria necessário ampliar o número de melhores empregos com salários mais altos para ajudar a tirar as pessoas da pobreza e capacitá-las a pagar por moradias melhores.
Os empregos em serviços com melhor remuneração podem impulsionar a economia criativa, ajudando seus participantes a cobrir o aluguel.
Portanto, aqui demandaria maior investimento em educação pública com qualidade.
Não dá para pensar no desenvolvimento da inovação de maneira particular.
O que constatamos com diversos dados é que as novidades tecnológicas só conseguem se transformar em benefícios para a sociedade (e até para o mercado) quando um grande número de pessoas conseguem tanto adotá-las quanto produzí-las.
Para não enfrentarmos novas e maiores crises no setor de tecnologia, talvez seja um bom momento para adotarmos soluções coletivas na construção do mercado de inovação.
0 resposta